PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA NO CURSO DO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL PARA ATINGIR OS BENS DE SÓCIOS: DISCUSSÕES E CONTRADIÇÕES.

Pedido de desconsideração de personalidade jurídica no curso do processo de recuperação judicial para atingir os bens de sócios: discussões e contradições.

A criação do instituto da recuperação judicial de empresa (RJ) remonta o princípio da preservação da atividade empresária dada sua importância social por permitir melhores preços de bens e serviços, desenvolvimento de novas tecnologias e geração de riqueza[1]. Assim, o uso da RJ tem como objeto a novação concursal de dívidas do empresário para superação de crise econômico-financeira temporária que venha a lhe afligir.

De outro lado, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), como seu próprio nome sugere, é questão secundária e acessória, cujo manejo se dá no curso de um processo principal, com objetivo de atribuir responsabilidade a um sujeito por dívida contraída por outrem[2]. Assim, quando procedente o incidente, a título de exemplo, faz-se possível cobrar de sócio(s) dívida de determinada sociedade, e vice-versa.

Nesse sentido, discussões emergem no que toca à possibilidade de utilizar o IDPJ no curso de uma ação de recuperação judicial para atribuir responsabilidade pelas dívidas renegociadas da Sociedade aos seus sócios ante, ao que parece, o manejo errado da ação com fins de macular alguma fraude ou abuso de direito por parte de sócios e/ou administradores da pessoa jurídica[3].

Há que se evidenciar que não há discussões acerca da possibilidade do pedido de desconsideração da personalidade jurídica no processo de falência – instituto também pensado para melhor gerir as crises econômico-financeira do empresário, que junto com a recuperação é disciplinada pela Lei 11.101/2005 – haja vista que no próprio Capítulo V da Lei 11.101/2005, cujo título é “Da Falência”, a hipótese é prevista no art. 82-A, parte final. Porém, o mesmo não se repete nos capítulos destinados à recuperação judicial de empresas.

Trata-se, porém, de tema complexo, pois conjuga aspectos de Direito Civil, Comercial e Processual Civil, entre outras áreas conexas.

Ora, o IDPJ encontra respaldo no art. 50 do Código Civil e nos arts. 133 a 137 do Código de Processo de Civil, com destaque para o art. 134 que prevê que “o incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento” levando ao entendimento que mesmo no cenário de ausência de previsão de sua utilização na Lei 11.101/2005, ela seria possível. Mas a Lei 11.101/2005 apesar de prever a regência supletiva do Código de Processo Civil (CPC), quando promulgada em 2005 ainda vigia o CPC de 1973 que não disciplinava um incidente próprio nos moldes do IDPJ previsto no CPC hodierno, o que traz ainda mais complexidade sobre se o legislador da lei de recuperação judicial teve como objetivo afastar ou não a aplicação do IDPJ, em uma interpretação legal teológica.

Outro contraponto da discussão é o art. 51, VI, Lei n.º 11.101/2005, que dispõe que a petição inicial do processo de recuperação judicial deverá ser instruída com “a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor”, com o objetivo de garantir que não houve fraude e/ou confusão patrimonial entre os bens dos sócios e da sociedade, cujo sucedâneo lógico, em caso de verificação de fraude e/ou confusão patrimonial, seria justamente o pedido de desconsideração da personalidade jurídica. Porém, em uma interpretação sistemática das áreas, tendo em vista que a agilidade é objetivo da Lei de recuperação judicial, para aumentar a possibilidade de recuperação do empresário, a aplicação do IDPJ necessitaria no mínimo de cautela, pois um de seus efeitos seria a suspensão do processo principal que o incidente estabelece conexão, o que de nada se coaduna com a agilidade tratada[4].

Sobre o tema o Superior Tribunal de Justiça (STJ), anterior a reforma recente da Lei n.º 11.101/2005, se manifestou em relação à demandas de conflitos de competência entre o juízo da recuperação judicial e demais juízos, como consumeristas e trabalhistas, em que se pede do IDPJ em ações que tenham alguma relação com a empresa recuperanda, editando a Súmula 480 que dispõe que “o juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa[5]. Ademais, pode-se citar que os entendimentos do STJ que o juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre o pedido da IDPJ quando for redirecionada para atingir bens dos sócios[6] salvo se o plano homologado na recuperação judicial contém cláusula que veda a execução contra os sócios[1] ou para coobrigados[2]. Todavia, ainda não há posicionamento consolidado do STJ sobre o uso do IDPJ no próprio processo de recuperação judicial, apesar de verificar uma tendência a sua permissibilidade em prol de uso mais ampliado do IDPJ.

Nesse sentido, diante do exposto, o uso do IDPJ na recuperação judicial exigirá a devida cautela, balizando os diversos institutos e normativas existentes, com os objetivos e interesses sociais que rodeiam um processo de recuperação judicial.

[1] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 4. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 1-2.
[2] PARENTONI, Leonardo. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no CPC/2015 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.
[3] GONÇALVES, João Paulo. Desconsideração da personalidade jurídica na recuperação judicial de empresas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/318046/desconsideracao-da-personalidade-juridica-na-recuperacao-judicial-de-empresas>. Acesso em 5 jun. 2023.
[4] PARENTONI, Leonardo. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no CPC/2015 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.
[5] Superior Tribunal de Justiça, Segunda Seção, Súmula 480, julgado em 27/06/2012, DJe 01/08/2012.
[6] “[…] EXECUÇÃO TRABALHISTA. EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL A EMPRESA EXECUTADA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA. CONSTRIÇÃO DO PATRIMÔNIO DOS SÓCIOS. INEXISTÊNCIA DE PROVIDÊNCIA PELO JUÍZO UNIVERSAL. […] Se a execução trabalhista movida em face da sociedade em recuperação judicial foi redirecionada para atingir bens dos sócios, não há conflito de competência entre a Justiça especializada e o juízo falimentar, não se justificando o envio dos autos ao juízo universal, pois o patrimônio da empresa recuperanda continuará livre de constrição. […]” (AgRg no CC 113280 MT, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/10/2010, DJe 04/11/2010)
[7] AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO LABORAL E JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO DE SOERGUIMENTO HOMOLOGADO. CLÁUSULA. CRÉDITO NOVADO. EXECUÇÃO CONTRA OS SÓCIOS. IMPEDIMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PELO JUÍZO LABORAL. CONFLITO. CARACTERIZAÇÃO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, “compete ao Juízo da recuperação decidir sobre a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, proposto no Juízo trabalhista, no caso em que o plano homologado contem cláusula que veda a execução contra os sócios” (AgInt no CC 179.072/RS, Segunda Seção, DJe 19/8/2022). 2. Agravo interno não provido. (AgInt no CC n. 195.229/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 2/5/2023, DJe de 4/5/2023.)
[8] AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXECUÇÃO DE CRÉDITO TRABALHISTA. INCLUSÃO DE COOBRIGADOS NO POLO PASSIVO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. COMPETÊNCIA INDISTINTA DA JUSTIÇA COMUM E DA JUSTIÇA DO TRABALHO. AUSÊNCIA DE INVASÃO DE ATRIBUIÇÕES JUDICIAIS. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Nos termos da iterativa jurisprudência desta Corte, a Justiça do Trabalho tem competência para decidir acerca da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade em recuperação judicial, bem como para, em consequência, incluir coobrigado no polo passivo da execução, pois tal mister não é atribuído com exclusividade a um determinado Juízo ou ramo da Justiça. 2. Nesses casos, de redirecionamento da execução para coobrigados, a jurisprudência desta egrégia Corte firmou o entendimento de não reconhecer a existência de conflito de competência, porquanto não há dois juízes decidindo acerca do destino do mesmo patrimônio. 3. Incidência da Súmula 480 desta Corte: “O juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa.” 4. Agravo interno desprovido. (AgInt no CC n. 188.933/SP, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 14/2/2023, DJe de 6/3/2023.).