Contratos de vendas futuras firmados entre produtores de grãos e tradings

Os produtores de grãos, principalmente de soja, estão cada vez mais disputando com os tradings o aumento do valor na venda da mercadoria, mesmo já havendo a pré-fixação do preço do grão firmado no contrato de venda futura.

Isto porque, muitos produtores alegam que devido ao aumento do dólar, os preços dos insumos para a produção dos grãos estão mais altos, o que, em tese, acarretaria no aumento do valor da mercadoria.

Além disso, os produtores rurais alegam também que a falta de chuva nos últimos tempos, em determinadas regiões, bem como a aparição da praga conhecida como “ferrugem asiática” – cujos danos podem acarretar perdas de até 90% da produtividade – estão ensejando o atraso da entrega da safra, além do aumento no custo da produção, haja vista que o controle da praga demanda a utilização de inseticidas e outros insumos, cujos valores impactam o preço final do grão.

Cabe destacar que, hoje em dia, é muito comum nas relações agrárias a realização de instrumento jurídico de compra e venda futura de safras agrícolas, com preços já pré-estabelecidos, o que é completamente legal na esfera jurídica.

A venda futura, no âmbito do direito, é a venda antecipada de mercadorias e posterior entrega das mesmas na data fixada pelo negócio acordado entre o vendedor e o comprador. Ou seja, o vendedor recebe o valor da mercadoria antes mesmo de entregar-lá ao comprador.

Antes de aprofundar sobre o tema, é importante esclarecer que contrato, resumidamente, é uma espécie de negócio jurídico que consiste em uma declaração de vontade, feita entre duas ou mais pessoas, no sentido de produzir um determinado e visado efeito jurídico. Nele são consagrados três princípios básicos: (i) função social do contrato; (ii) boa-fé objetiva ; e (iii) equilíbrio contratual.

Em linhas simplificadas, o princípio da função social do contrato, disposto no artigo 421 do Código Civil, evidencia que o contrato deve cumprir a função social que dele se espera, visando atender os interesses do indivíduo, protegendo sempre a dignidade da pessoa humana. Já a boa-fé objetiva é, de certa forma, um padrão de conduta, onde as partes em uma relação obrigacional têm o dever de agir com base nos valores éticos e morais aceitos em sociedade. Por fim, o princípio do equilíbrio contratual, por um lado, enseja a renegociação do negócio firmado entre as partes, como também, por outro lado, abre espaço à revisão do contrato ou até mesmo à sua resolução, demandando a confirmação de mudanças incidentes do cenário inicial vigentes no tempo da realização do contrato.

Desta forma, dependendo das circunstâncias que permeiam a realização e o cumprimento de um negócio jurídico, ele poderá ser revisto pelas partes ou até rescindido. Carlos Roberto Gonçalves assevera que:

“Em realidade, com base nas cláusulas gerais sempre se poderá encontrar fundamento para a revisão ou a extinção do contrato em razão de fato superveniente que desvirtue sua finalidade social, agrida as exigências da boa-fé e signifique o enriquecimento indevido para uma das partes, em detrimento da outra”. (GONÇALVES, 2019, p. 57).

A título exemplificativo, se uma das partes estiver sendo prejudicada devido ao contrato acordado, as mesmas podem rever o instrumento para que, com base na boa-fé, haja um equilíbrio contratual, a fim de que o instrumento não prejudique nenhuma das partes.

Assim sendo, todo contrato possui suas particularidades e características, como cláusulas e regras próprias. No entanto, independente do objeto do negócio jurídico, ele sempre estará sujeito à legislação, entre elas o Código Civil brasileiro.

Quando um produtor rural firma contrato de venda futura com uma empresa, ele está se obrigando a cumprir com o que foi determinado (pacta sunt servanda), desde que haja, dentro dos limites da lei, vontade das partes, norteadas pelo princípio da boa-fé.

Mas o que acontece se houver, em momento posterior, desconformidades com a função social do negócio firmado anteriormente? Como quando há aumento no preço dos insumos para a produção do grão, devido a alta do dólar? Neste caso, o produtor terá direito à revisão contratual para que o preço da mercadoria seja modificada? Ou terá que cumprir com o que foi pré-fixado no negócio jurídico?

Diante de tal cenário, as tradings estão recebendo notificações extrajudiciais de produtores rurais na tentativa de revisar os preços e prazos de entregas de contratos de produção dos grãos.

Diante disso, além dos envios das notificações extrajudiciais por parte dos produtores rurais,  estão sendo demandadas ao Judiciário ações para que seja feita a revisão do preço nos contratos de vendas futuras firmados entre produtores rurais e as tradings, sob a argumentação da alteração das bases fáticas sobre as quais o contrato foi firmado.

Isso pode ser necessário para que o produtor rural possa demonstrar ao Magistrado, caso não se resolva o conflito extrajudicialmente, as alterações, sejam elas econômicas e/ou climáticas, que ocorreram após o firmamento do negócio jurídico, bem como justificar os motivos do seu inadimplemento ou flagrante prejuízo com o adimplemento.

Entretanto, antes de enveredar para o pedido de rescisão, é indispensável uma análise jurídica do contrato por um advogado especialista da área, para que possa ser verificado todas as obrigações firmadas pelas partes, notadamente, se a parte não se obrigou a cumprir com suas obrigações independentemente da ocorrência das hipóteses de caso fortuito ou força maior – art. 393 do CC. Além disso, é importantíssimo deixar claro que o pedido de revisão ou rescisão contratual amparado em alegação de desequilíbrio econômico e financeiro e onerosidade excessiva só terão efeito se o vendedor puder comprovar a existência de fatores extraordinários, imprevisíveis e alheios à sua vontade.

Isso porque, fatores recorrentes que já eram esperados ou previsíveis, não se enquadram no critério da revisão, notadamente, alegações genéricas de pragas já conhecidas, excesso de chuva, ou a sua falta (características da região), geadas, aumento dos insumos, mão de obra, etc.

Neste sentido, importante destacar, que no âmbito jurisdicional, a revisão do contrato não é acolhida e acatada em todo e qualquer caso, como se verifica nos julgados do Supremo Tribunal de Justiça – STJ, especialmente no REsp 866414/GO, que demonstrou que a ocorrência de ‘ferrugem asiática’ não é fato extraordinário e imprevisível para enquadrar-se na onerosidade excessiva, estabelecida no artigo 478 do Código Civil. Ressalta-se que o princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva, dá permissão para os contratantes recorrerem ao Poder Judiciário, com o objetivo de obterem alteração da convenção, em determinadas situações. (GONÇALVES, 2019, p. 208).

Neste viés, para que as chances de acolhimento sejam maiores, é imprescindível a comprovação por parte do vendedor o desequilíbrio contratual, caso contrário, o juiz não interferirá revisando os contratos caso não ficar evidenciada a comprovação efetiva de tal desequilíbrio.

Acrescenta-se, por fim, que o contrato faz lei entre as partes, sendo que não é dada a nenhuma delas a procedência de pleitear a sua revisão só porque posteriormente verificou que as condições pactuadas já eram desvantajosas à época da celebração do contrato.

Sendo assim, diante dos fatos supracitados, verifica-se que a presença de um advogado especialista, tanto no estudo, quanto na elaboração de contratos, é de extrema importância, vez que é profissional apto a advertir sobre os riscos eventualmente existentes em cada negócio, recomendando os trajetos mais seguros para que o contratante ou contratado tenha confiança e segurança com a responsabilidade que estará integrado ao assinar a minuta do contrato.

 

Referências bibliográficas:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 866414/GO, Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi, 20 jun, 2016. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 19 mar, 2021.

CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Revisão judicial dos contratos como instrumento de equilíbrio econômico contratual. In: Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil, Ano XII, n. 73, 2011.

FIUZA, César Augusto; NETO, Orlando Celso; JUNIOR, Otávio. XXIV Congresso Nacional do CONPEDI – organização CONPEDI/UFMG/ FUMEC/Dom Helder Câmara. Belo Horizonte, 2015

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. 16. ed. v. 3. São Paulo:Saraiva, 2019.

MELLO, Fabiano Cotta. E se a entrega da soja gerar prejuízo ao produtor rural? Migalhas, São Paulo, 23 de fev, 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/340754/e-se-a-entrega-da-soja-gerar-prejuizo-ao-produtor-rural>. Acesso em:  18 de mar, 2021.

 

 

Heloina Miranda e Júlia Brito
Heloina Miranda é advogada Sênior e Coordenadora Cível do escritório GVM | Guimarães & Vieira de Mello Advogados, responsável pelas áreas de Direito Contencioso Cível Estratégico nas áreas: contratos, direitos reais, ações indenizatórias em geral, sucessões e locação E-mail: hmiranda@gvmadvogados.com.br   Júlia Brito é estudante de Direito da Faculdade de Direito Milton Campos e estagiário do escritório GVM | Guimarães e Vieira de Mello Advogados, atuando em contencioso cível estratégico. E-mail: jbrito@gvmadvogados.com.br